BRASÍLIA – Pablo Marçal (PRTB) lidera uma “missão” com cerca de 220 brasileiros em uma jornada pelo Egito, Jordânia e Israel, em meio ao conflito no Oriente Médio. O autodenominado ex-coach diz que o grupo nada teme por ter um “propósito” espiritual, fazendo seu “Êxodo”, como no Velho Testamento.
Nas redes sociais, Marçal exibe momentos de descontração com a esposa e dois filhos pequenos, em pontos turísticos do roteiro, com roupas e acessórios de grifes caros, além de passeios em camelos e quadriciclo. Também há registros românticos do casal, com abraços e beijos.
Em vídeos, Marçal se coloca como liderança espiritual, palestrando para o grupo que pagou pela viagem pela zona de conflito. Além de discursos, faz sermões em montes, comanda orações e até batismos.
Mês passado, Marçal virou réu por colocar a vida de 32 pessoas em risco durante uma escalada no Pico dos Marins, em Piquete, no interior de São Paulo. Agora ele evoca a Bíblia para justificar a viagem com outro grupo por uma zona de conflito.
A jornada mais recente começou no dia 18, cinco dias após o primeiro ataque de Tel Aviv ao Irã, que desencadeou o confronto de 12 dias entre os dois países. Marçal diz que seu grupo foi o primeiro a entrar em Israel de ônibus nesta quarta (25), logo após o cessar-fogo iniciado na terça (24).
Em uma publicação de 7 de junho, Marçal vendia um dos lotes do curso por R$ 77 mil. A programação, segundo o anúncio nas redes sociais, prevê retorno no próximo sábado (28). O ex-coach diz fazer tudo dentro da legalidade e com segurança.
No entanto, o Itamaraty desaconselha as viagens não essenciais à região desde outubro de 2023, quando começou a guerra entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza. Na semana passada, mais de 40 autoridades brasileiras tiveram que deixar Israel às pressas por causa da guerra com o Irã.
“Sim, entramos em Israel, com autorização do governo local. Não estamos violando nenhuma regra. Enquanto muita gente está paralisada pelo medo, nosso grupo de 220 pessoas foi o primeiro do mundo a pisar aqui nesse momento”, diz nota divulgada pela assessoria de Marçal.
“Fizemos o nosso próprio ‘Êxodo’: saímos do Egito, atravessamos o Mar Vermelho, passamos pela Jordânia e agora estamos em Israel. Estamos dentro do ‘acordo de paz dos 12 dias’ e não estamos aqui por turismo, mas por propósito. Não temos data para voltar ao Brasil”, prossegue.
“Sobre segurança, estamos debaixo de uma proteção que não se compra com colete à prova de bala. Quem anda em missão não negocia com medo. A guerra não nos assusta, nos posiciona. Quem vive pra agradar manchete nunca vai mudar a história”, completa o comunicado.
Réu por colocar em risco a vida de 32 seguidores durante expedição
Em 20 de maio, a juíza Rafaela D'Assumpção Cardoso Glioche, do Tribunal de Justiça de São Paulo, aceitou nesta terça-feira (20) a denúncia do Ministério Público estadual contra Pablo Marçal, que ficou em terceiro lugar na disputa pela Prefeitura de São Paulo em 2024.
O autodenominado ex-coach é acusado de colocar em risco a vida de ao menos 32 pessoas durante uma expedição ao Pico dos Marins, em Piquete (SP), em janeiro de 2022. A aventura deu tão errado que bombeiros foram acionados para resgatar o grupo.
Para Glioche, a investigação policial, que sustenta a denúncia do MP, tem indícios suficientes para abertura do processo criminal. Entre outras coisas, o grupo liderado por Marçal foi exposto a riscos sem roupas apropriadas, nem guias especializados, com chuva, neblina e rajadas de ventos de 100 km/h.
O Pico dos Marins tem 2,4 mil metros de altitude e é o quarto maior de todo o Estado de São Paulo. A escalada, por uma trilha, pode levar de sete a oito horas – ida e volta –, e deve ser feita nos períodos mais secos do ano, entre abril e agosto, conforme especialistas em montanhismo.
Conforme a denúncia do MP e vídeos divulgados pelo próprio Marçal, sua intenção era mostrar a importância de se correr riscos para vencer e prosperar na vida. Ele conseguiu reunir cerca de 60 pessoas para o desafio, pago, como tantos outros que ele costuma oferecer em “cursos” voltados principalmente a empreendedores.
Marçal debochou de alerta de guia, segundo investigação
Na expedição que ocorreu em 4 e 5 de janeiro de 2022, em uma época considerada crítica para a subida ao Pico, choveu muito. Com a neblina, a visibilidade era pouca.
Um dos “guias” contratados por Marçal alertou que “era inviável prosseguir, advertindo-o dos riscos”, segundo a investigação – do total, 32 “alunos” decidiram seguir em frente.
“Contudo, o denunciado desdenhou dos avisos e chamou o guia de ‘covarde’, conclamando aos presentes que o seguissem (donde 32 pessoas atenderam tal chamado), expondo, assim, a vida e saúde de todos aqueles que o acompanharam a perigo direto e iminente (inclusive de morte)”, diz trecho da denúncia do MP.
“Entretanto, na medida em que subiam a trilha rumo ao cume, a chuva aumentou, exsurgindo significativa neblina e vento forte, com pouca visibilidade, o que tornava o trajeto inóspito, permeado de lama e pedras escorregadias, afora o risco de hipotermia (algumas pessoas estavam com as vestimentas encharcadas sem peças de troca)”, destaca a promotoria.
Por volta das 4h de 5 de janeiro, um dos seguidores de Marçal entrou em contato via rádio com o guia que havia sido contratado pelo influenciador e pediu socorro. Foi o homem chamado de “covarde” por Marçal quem acionou o Corpo de Bombeiros, que salvou o grupo.
Os bombeiros iniciaram as buscas por volta das 6h do dia 5. Após duas horas de caminhada, militares encontraram o primeiro grupo – de 14 pessoas –, a 1,5 km do cume do Pico dos Marins. Sem guia, estavam assustados, com frio, encharcados.
Esse grupo desceu para a base com parte dos bombeiros, enquanto a outra equipe seguiu à procura do restante do grupo de Marçal, localizado após uma hora. Tudo foi registrado pelo próprio Marçal e publicado em suas redes sociais, que tratou o desafio como algo místico.
Coach fez oração para pedir que Deus parasse o vento
Em determinado momento, quando o grupo já havia começado a subida, em meio a condições climáticas adversas, Marçal convocou uma oração conjunta para que Deus pudesse “parar o vento”.
“Eu sei no meu coração que dá pra subir. Vai ser a pior experiência de todas. Nós sabemos que, do jeito que está aqui, não dá para subir. Mas uns pararam o sol, outros voltaram o tempo. A gente não tá pedindo nada disso. Só estamos pedindo para o Senhor desviar o vento”, disse Marçal.
O influenciador compartilhou até vídeos de seguidores exaustos, reclamando de frio falando em desistir, enquanto ele insistia para todos continuarem na trilha rumo ao pico. Marçal afirmava que a “era uma chance de crescimento” e que era preciso “vencer os medos”.
Em uma rede social, Marçal ironizou as críticas e postou uma foto do grupo que completou a trilha. Afirmou que o Corpo de Bombeiros foi acionado por precaução.
“Decidi chamar o bombeiro porque perdemos a comunicação por rádio com o grupo que ficou na base do pico. Mas descobrimos no outro dia que estavam todos em paz com o guia deles”, escreveu. Ele ainda alfinetou os militares ao publicar uma imagem com os dizeres: “Só os irresponsáveis chegam no topo”.
Mas o Corpo de Bombeiros de São Paulo deixou claro que não atuou com precaução, já que atende ocorrências de emergência.
Pablo Marçal ignorou proposta de acordo do MP
O MP apresentou 32 denúncias contra Marçal com base no artigo 132 do Código Penal, que trata de “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”.
O MP propôs uma transação penal – acordo para evitar a ação –, sugerindo o pagamento de R$ 272 mil – 180 salários-mínimos –, que seriam destinados a entidade pública ou privada com destinação social.
No entanto, os advogados do acusado não se manifestaram e o processo criminal teve andamento, até a juíza aceitar a denúncia do MP.
Após ser intimado, Marçal terá 10 dias para se manifestar à Justiça. ele também poderá apontar provas e testemunhas.
Furto, fraudes e condenações no histórico de Marçal
Marçal já foi preso pela Polícia Federal e condenado pela Justiça Federal de Goiás a quatro anos e cinco meses de reclusão por furto qualificado, sob acusação de integrar uma quadrilha que desviava dinheiro de contas de bancos como Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil por meio de golpes pela internet.
Ele só não cumpriu a pena porque, após apresentar diversos recursos judiciais, o caso prescreveu em 2018.
Marçal também foi apontado como culpado pela morte de um funcionário de 26 anos durante uma maratona de rua organizada pela Plataforma Internacional, holding criada pelo influenciador. Mas ele não foi condenado por esse episódio, que trouxe à tona outras denúncias de casos semelhantes.
Em junho de 2023, Marçal foi alvo de operação da PF contra crimes de falsidade ideológica eleitoral, apropriação indébita eleitoral e lavagem de dinheiro nas eleições de 2022, quando se declarou ser candidato a presidente da República e depois disputou uma cadeira da Câmara por São Paulo.
Em fevereiro último, o Tribunal Regional Eleitoral de SP (TRE-SP) condenou Marçal à inelegibilidade por 8 anos por abuso de poder político. Ele recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Durante a campanha de 2024, Marçal usou um laudo médico falso para atacar o adversário político Guilherme Boulos (Psol), alegando uma suposta internação por uso de cocaína. O empresário foi processado por Boulos e pela filha do médico que teve assinatura usada na fraude.