BRASÍLIA – O procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet Branco, afirmou nesta terça-feira (2/9) que o ex-presidente Jair Bolsonaro era o líder e maior beneficiado pela suposta trama golpista que visava impedir a posse do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Ao pedir a condenação de Bolsonaro e outros sete réus que integravam o chamado “núcleo crucial” e começaram a ser julgados nesta terça, Gonet afirmou que, conforme a lei, não é preciso uma ordem oficial assinada pelo então presidente para ser configurado o crime de golpe de Estado. 

Gonet disse que reuniões de teor golpista, como as apontadas pelas investigações, já são suficientes para caracterizar o golpe de Estado. E a tentativa por si só é julgada porque um golpe consumado não chega aos tribunais justamente porque o poder é tomado pelos criminosos.

“Para que a tentativa se consolide, não é indispensável que haja ordem assinada pelo presidente da República para adoção de medidas estranhas à realidade funcional”, afirmou o chefe do Ministério Público Federal (MPF) ao apresentar sua acusação contra os oito réus

“A tentativa se revela na prática de atos e de ações dedicadas ao propósito da ruptura das regras constitucionais sobre o exercício do poder, um apelo ao emprego da força bruta, real ou ameaçada”, emendou. “Não reprimir criminalmente tentativas dessa ordem recrudesce o autoritarismo”, completou.

No caso de Bolsonaro e aliados, de acordo com Gonet, “quando o presidente e o ministro da Defesa [Paulo Sérgio Nogueira] convocam a cúpula militar para apresentar documento de formalização de golpe de Estado, o processo criminoso já está em curso”.

Contrariando o que disseram os réus em suas defesas, Gonet afirmou que as reuniões comandadas por Bolsonaro não eram meras suposições ou consultas, mas provas coletadas pela Polícia Federal. Para o procurador, a tentativa de golpe está explicitada em provas coletadas pela Polícia Federal (PF).

“Não há como negar fatos praticados publicamente, planos apreendidos, diálogos documentados e bens públicos deteriorados [...] Encontra-se materialmente aprovada a sequência de atos destinados a propiciar a ruptura da normalidade do processo sucessório”, apontou.

Pressão sobre comandantes

Gonet disse que os comandantes das Forças Armadas foram assediados por Bolsonaro a tomar o poder pela força e impedir a diplomação de Lula, em dezembro de 2022. No entanto, o plano só não vingou por falta de adesão de todos os comandantes.  

“O golpe não se consumou, uma vez que, no obstante tentado, e insistentemente pelos denunciados, não obteve a adesão dos comandantes do Exército [general Marco Antônio Freire Gomes] e da Aeronáutica [brigadeiro Carlos Baptista Júnior]”, disse o procurador. 

Ainda segundo Gonet, depoimentos coletados ao longo do processo apontaram que as medidas seriam assentadas “tão logo obtido o apoio das Forças Armadas”, o que só teria ocorrido pelo comandante da Marinha, almirante Almir Garnier. 

“O comandante da Marinha prontamente assentiu ao projeto e se dispôs a fornecer tropas. A resistência que houve foi das outras duas armas. Os comandantes confirmaram terem sido constantemente pressionados, inclusive por meio de ataques virtuais, a aderir ao intento disruptivo”, afirmou.

Instabilidade social 

Enquanto pressionavam os comandantes militares, Bolsonaro e aliados faziam de tudo para desestabilizar o país, com manifestações e constantes ataques às instituições democráticas, principalmente a Justiça Eleitoral, de acordo com Gonet.

“A tentativa de convencimento de autoridades do Exército da Aeronáutica para o golpe não obteve o êxito esperado. O grupo conspirador enxergou, então, na geração de um cenário de instabilidade social uma conjuntura útil para os seus propósitos”, afirmou o procurador. 

Ele citou uma série de eventos que teriam contribuído para tal cenário, como o fechamento de rodovias logo após a vitória de Lula nas urnas e a montagem de acampamentos em frente a quartéis do Exército, com incentivo de Bolsonaro e ministros. 

Gonet lembrou que o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, confirmou que o ex-presidente “deliberadamente estimulava a expectativa da população a fim de provocar situação que justificasse a intervenção das Forças Armadas”. 

“Em depoimento no Supremo Tribunal, ele disse que o então presidente sempre dava esperanças de que algo fosse acontecer para convencer as Forças Armadas a concretizarem o golpe”, ressaltou o chefe do Ministério Público.

‘Explosão’ de revolta popular

Gonet disse que a “organização criminosa” “programou e promoveu a explosão” da revolta popular. O grupo, segundo ele, passou a desejar os atos de 8 de janeiro, incentivando cada vez mais manifestações contra a posse de Lula, com intervenção militar.

Conforme a investigação da PF, discursos de autoridades e mensagens espalhadas em redes sociais colaboraram para eventos como a quebradeira na área central de Brasília em 12 de dezembro, dia da diplomação de Lula como presidente eleito.

“Apta a motivar providências interventivas, arrastando o Exército para as peripécias aspiradas, o 8 de janeiro de 2023, que não teria sido o objetivo principal do grupo, passou a ser desejado e incentivado quando se tornou a verdadeira opção disponível”, destacou.

Provas produzidas pelos réus

Em suas alegações, Gonet ressaltou que os próprios acusados fizeram “questão de documentar passos da empreitada”, como a chamada minuta do golpe, apreendida na casa de Anderson Torres, ministro da Justiça de Bolsonaro e secretário de Segurança do Distrito Federal em 8 de janeiro de 2023.

Gonet também citou o plano de assassinato de autoridades, como o presidente Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator da ação penal que trata da suposta trama golpista e que tem ao todo, 34 réus.

O chefe do MPF lembrou que o plano para matar o magistrado foi exposto pelo general Braga Netto e confessado pelo general Mário Fernandes – réu em outra ação que trata sobre o suposto golpe de Estado, ele era um dos “kids pretos” envolvidos na trama.

Gonet afirmou que o “grupo, liderado pelo presidente Jair Bolsonaro desenvolveu e implementou um plano progressivo e sistemático de ataque às instituições democráticas com a finalidade de prejudicar a alternância legítima de poder nas eleições de 2022 e minar o livre exercício dos demais poderes funcionais, especialmente do Poder Judiciário”. 

O chefe do MPF citou os discursos contra a legitimidade das urnas eletrônicas, feitos por Bolsonaro, ministros e outros aliados políticos e reverberados por meio de redes sociais. Foi o ataque às urnas em uma reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada que levou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a tornar Bolsonaro inelegível até 2030.

Advogado de Bolsonaro não vê novidades

A defesa de Jair Bolsonaro disse não ter visto novidades na sustentação oral das alegações finais de Paulo Gonet, nesta terça-feira. O advogado Paulo Bueno afirmou que elas foram uma “repetição do que está colocado no papel”. “Nada de excepcional”, acrescentou Bueno.

Ao deixar a Primeira Turma do STF, onde ocorre o julgamento, o advogado se limitou a dizer que rebaterá todos os pontos das alegações finais de Gonet. “Invariavelmente vocês devem ter visto que as nossas alegações finais são extensas e rebatem todos os pontos”, pontuou Bueno.

Ele ainda reiterou que Bolsonaro não pediu autorização a Moraes para ir ao julgamento em razão de sua saúde, que está “debilitada”. “Ele não tem obrigação de vir ao julgamento. (...) (São) muitas horas. Com a condição de saúde dele não é recomendável”, argumentou Bueno.

A sustentação oral da defesa de Bolsonaro está prevista para esta quarta (3/9), segundo dia de julgamento. A ordem de fala dos advogados dos réus seguirá a ordem alfabética, exceção feita à Mauro Cid, que, enquanto delator, abrirá a fila quando a sessão for retomada.

Quem está no banco dos réus

Entre os acusados, estão nomes centrais do governo de Bolsonaro e militares de alta patente. São eles:

  • Jair Bolsonaro: capitão do Exército de 1973 a 1988, foi presidente da República de 2019 a 2022;
  • Alexandre Ramagem: diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo Bolsonaro, foi delegado da Polícia Federal (PF); atualmente, é deputado federal;
  • Almir Garnier: comandante da Marinha na gestão Bolsonaro, é almirante de Esquadra da Marinha;
  • Anderson Torres: ministro da Justiça no governo Bolsonaro e delegado da PF, era secretário de Segurança do Distrito Federal nos atos de 8 de janeiro de 2023;
  • Augusto Heleno: ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de Bolsonaro, é general da reserva do Exército;
  • Mauro Cid: ex-ajudante de ordens da Presidência, era um dos principais assessores de Bolsonaro; é tenente-coronel do Exército;
  • Paulo Sérgio Nogueira: ministro da Defesa na gestão Bolsonaro, é general do Exército;
  • Walter Braga Netto: general da reserva do Exército, foi ministro da Casa Civil e da Defesa de Bolsonaro, e vice na chapa do ex-presidente em 2022.

Os crimes em análise

O grupo responde por abolição violenta do Estado democrático de direito, tentativa de golpe de Estado, participação em organização criminosa, dano qualificado ao patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. 

A exceção é Ramagem que, por ocupar mandato de deputado, responderá agora somente pelas acusações de tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolir o Estado democrático de direito e organização criminosa. O julgamento dos outros dois crimes deve ser retomado pela Justiça quando ele deixar o cargo.

Todas as acusações se apoiam em uma lei sancionada pelo próprio Bolsonaro em 2021, que tipificou de forma mais clara os crimes contra a democracia após a revogação da antiga Lei de Segurança Nacional.

As investigações 

As apurações da PF começaram após os atos de 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas e depredadas. A investigação revelou um conjunto de elementos que, segundo a PGR, demonstram a existência de um plano orquestrado de ruptura institucional.

Entre as evidências, estão a elaboração da chamada “minuta do golpe”, impressa no Palácio do Planalto, que previa decretar Estado de Defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE); a pressão sobre comandantes militares; a disseminação de fake news contra as urnas; e até planos de assassinato de autoridades.

O que está em jogo

O processo contra o “núcleo 1” é considerado o mais sensível do conjunto de ações penais abertas após os atos de 8 de janeiro. Para a PGR, esse grupo representava o núcleo decisório e operacional do suposto golpe. Ao todo, são 32 acusados organizados em quatro núcleos distintos, mas o foco inicial recai sobre os oito que, em tese, tinham poder de mando e articulação direta.